A escola que cresce junto

Na busca por uma escola que ajude na educação do filho, os pais querem muito mais do que aula. Querem que o filho seja acolhido, bem recebido e cuidado em suas diferenças e singularidades. Em suas especificidades e limitações. Como todo aluno – com ou sem deficiência. E, para isso, é necessário que haja um suporte pedagógico pleno capaz de atender ao aluno e despertar suas potencialidades.

Não é fácil, no entanto, para o professor deparar em sala de aula com um aluno que precisa de uma atenção maior, que carece de um cuidado específico. Por vezes, o docente precisa dedicar-se à busca de recursos metodológicos que o ajudem a envolver o aluno e permitir a ele o prazer da descoberta, com respeito ao tempo de cada um. É essa iniciativa, uma estratégia pedagógica diferenciada, que caracteriza a inclusão.

Especialistas são enfáticos ao afirmar que o apoio educacional é fundamental. É na escola, muitas vezes, que os pais procuram auxílio quando não sabem a quem recorrer. É por isso que as práticas pedagógicas devem ser cuidadosamente realizadas, abarcando não somente professores, mas toda a equipe que faz parte do universo escolar. Se chamamos de inclusão, é porque há exclusão, lembram os estudiosos do assunto. Que possamos, cada vez mais, amainar os efeitos perversos dessa discriminação e promover a socialização, o bem-estar, o crescimento mútuo.

 

Como a escola se prepara para receber?

Além de recursos técnicos e profissionais de apoio, o atendimento das crianças e dos adolescentes com deficiência exige uma gama de afetos e de interesses múltiplos. No Ceará, os Núcleos de Apoio Pedagógico Especializado (Napes) e o Centro de Referência em Educação e Atendimento Especializado do Estado do Ceará (Creaece) são determinantes para a inclusão

Isabel Costa / isabelcosta@opovo.com.br

Simone Lima, de 43 anos, é professora de língua portuguesa da rede pública estadual. Graduada na década de 1990, ela encontrou um novo desafio pedagógico nos últimos anos: a presença constante de adolescentes com deficiência em sala de aula. Se antes eles eram atendidos apenas em instituições especializadas, agora é cada vez mais comum ter alunos com esse perfil. Simone – que, no curso de Letras, nunca teve disciplinas sobre educação inclusiva – precisou repensar o modelo de aulas para atender a esse público. A tarefa é prazerosa, mas não é fácil.

Por vezes, nas reuniões que tem com o Núcleo de Apoio Pedagógico Especializado (Nape) da escola, a professora chega às lágrimas. Não é simples, ela diz, tentar caminhar a passos largos quando todo o sistema não colabora para a aprendizagem dos estudantes. Quando recebeu um surdo em sala, ela elaborava planos de aula detalhados para que o aluno pudesse fazer a leitura. “Tentava falar pausadamente e com bastante articulação para que ele pudesse fazer a leitura labial. Pedia para os colegas ajudarem. Incentivava a participação”, conta a docente, que leciona na Escola de Ensino Fundamental e Médio Polivalente Modelo de Fortaleza, no bairro José Walter.

É com o Nape e seus profissionais que Simone pode contar. Busca apoio para entender como construir as aulas. Muito do que ela aplica na sala, entretanto, vem de pesquisas próprias e de observação empírica. Já teve alunos surdos, cegos e autistas. Quando a deficiência é identificada, fica tudo mais fácil. O maior problema, aponta, é quando eles chegam à sala sem um laudo. “A gente sabe que aquela pessoa tem uma particularidade, mas ninguém nunca investigou para saber o que é. Às vezes, por medo, as famílias fingem que não veem”, lamenta.

A realidade de Simone é parecida com grande parte dos docentes das redes públicas de ensino. Apesar de não terem passado por formação específica para atuar com pessoas com deficiência em suas graduações, eles se esforçam e fazem acontecer uma prática diferente. São amparados, entretanto, por equipamentos de retaguarda como os Napes e o Centro de Referência em Educação e Atendimento Especializado do Estado do Ceará (Creaece).

Aline Lourenço, superintendente de Educação Especial da Sefor II, explica que muitas escolas têm dificuldade de lidar com os alunos com deficiência. “Eles estão deixando de ficar em casa ou de frequentar instituições específicas e estão indo para a sala de aula regular”, pontua Aline. Entre a classe docente, ela diz, ainda há dificuldade sobre como trabalhar: “Mas eles buscam ajuda”.

A disposição dos professores cearenses para encontrar os melhores mecanismos de ensino atrai cada vez mais pessoas para a sala de aula. “Estamos vivendo uma época na qual se fala muito de inclusão, se fala muito de tirar os meninos das casa… Mas temos que ter a consciência de que nós precisamos preparar os nossos diretores, gestores e professores para avaliar esses alunos e passar o conhecimento de acordo com a necessidade e a realidade dos alunos”, destaca Aline.

Gêwada Weyne Linhares, assessora técnica da Educação Especial Codea/Diversidade e Inclusão Educacional da Seduc, destaca como fundamental a presença dos Napes, que são uma iniciativa única no Brasil. “Com profissionais da saúde – terapeuta, psicólogo, fonoaudiólogo. Outros estados só têm isso na área de saúde. Nós temos esses núcleos dentro de escolas e atendendo estudantes de várias instituições. E o Creaece, além disso, que atende a todos os serviços da área, faz acompanhamento das famílias, dos estudantes e confecção de material para alunos”, acrescenta.

Equipamentos pedagógicos de suporte:

– Núcleos de Apoio Pedagógico Especializado (Napes)
São espaços pedagógicos que têm uma equipe multiprofissional – composta de pedagogos, assistentes sociais, psicólogos, fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais, equipados com recursos pedagógicos específicos. Implantados em oito escolas de Fortaleza para dar suporte às instituições no processo inclusivo; atualmente atende a 780 alunos.

– Centros especializados que atuam na área de educação
Instituições não governamentais que realizam Atendimento Educacional Especializado (AEE), acompanhamento psicológico, terapias alternativas, atenção individualizada nas atividades de vida autônoma. A Seduc mantém convênio com 47 instituições. Por meio desses convênios, o Estado apoia o atendimento de 4.885 pessoas.

– Centro de Referência em Educação e Atendimento Especializado do Estado do Ceará (Creaece)
O Creaece é vinculado à Codea/Diversidade e Inclusão Educacional. Funciona em Fortaleza e oferece serviços de Atendimento Educacional Especializado (AEE), complementar e/ou suplementar, para alunos público-alvo da educação especial, produção e transcrição de materiais didáticos em braille para 97 escolas da rede. Também promove formação nas diversas áreas da educação especial para cerca de quatro mil professores e outros profissionais.

Fonte: Secretaria da Educação do Ceará (Seduc)

SELENE PENAFORTE

Uma escola para todos

Para a professora Selene Penaforte, se ainda é preciso usar “inclusão”, é porque existe exclusão. E refere-se aos muitos que estão fora da escola – não só às crianças com deficiência. Segundo ela, quanto menor a criança chegar à escola, melhor

Lucas Mota / lucasmota@opovo.com.br

Amparada por larga experiência em pesquisas sobre educação inclusiva, a professora Selene Penaforte é uma das principais referências na área, no Ceará. Com autonomia no segmento, ela é atualmente membro do Conselho Estadual de Educação. Na década de 1990, quando ainda se tinha uma visão limitada sobre inclusão, Selene iniciou seus trabalhos na área e coordenou a primeira equipe de educação especial da Secretaria da Educação de Fortaleza para atuar com uma nova proposta inclusiva. Em conversa com O POVO, a doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC) defende a cultura inclusiva e faz uma avaliação sobre os papéis desenvolvidos pelos gestores escolares e professores, a formação dos docentes para trabalhar com a inclusão de alunos com deficiência, os avanços no segmento e a importância da gestão nas escolas.

O POVO – O que fez a senhora focar em pesquisas na área de educação inclusiva?
Selene Penaforte – Eu trabalho com educação inclusiva desde o início da década de 90. Na época, nem se falava em educação inclusiva. A gente só tinha a visão da educação especial, que era a forma de atendimento, à época, das pessoas com deficiência, principalmente no que diz respeito à escolarização.  Esse atendimento era feito separado em escolas especiais ou em classes especiais. Fui da primeira equipe de educação especial. Coordenei essa equipe na rede municipal de Fortaleza, na Secretaria de Educação. A gente começou a discutir essa visão nova que acontecia em outros países e a possibilidade de trazer pra cá. A gente começou com experiências pequenas e, de lá pra cá, minha convicção foi aumentando de que não tinha sentindo esse sistema à parte, e a gente já participou de inúmeros projetos e pesquisas nessa área. Pra mim, é uma convicção de que, para o desenvolvimento das crianças, jovens, que apresentam qualquer tipo de deficiência, a escola regular inclusiva é o melhor caminho.

O POVO – Dessa época, da década de 1990, quais foram os principais avanços no campo de educação inclusiva?
Selene – A Constituição de 1988 previa a obrigatoriedade da oferta do atendimento educacional especializado, algo que as pessoas se confundiam com a escolarização. A Constituição falava que esse atendimento deveria ser feito preferencialmente na escola, mas esse atendimento não se referia à escolarização. Daquela época pra cá, muito se caminhou para trazer clareza sobre esse ‘preferencialmente’, que era esse atendimento complementar, e não a escolarização. Na verdade, a legislação só deixou isso muito claro com a Política Nacional de Educação Especial, na perspectiva da educação inclusiva, em 2008. Ela deixa claro na norma o que é esse atendimento educacional especializado, que ele não substitui a escolarização do aluno na escola comum. Tivemos inúmeros avanços na legislação, com regulamentações a partir de decretos, de resoluções. Um documento inspirador de tudo isso ocorreu na convenção internacional da ONU sobre os direitos da pessoa com deficiência. Houve muito avanço da prática pedagógica na escola, incremento de pesquisa, formação de professores, produção de material e da própria escola inclusiva. Hoje percebemos o ensino se mobilizando na formação de professores.

O POVO – E dentro dessa evolução, como a senhora destaca os gestores?
Selene – O papel do gestor escolar é fundamental. Professores, bem ou mal, estão passando por essas formações, as coisas estão acontecendo dentro da sala de aula, e eles precisam de apoio educacional. Para que a educação especial deixe de ser apenas do (professor) especialista, e seja da escola como um todo, a figura capaz de trazer essa noção é o diretor. Ele precisa desenvolver três dimensões fundamentais para que a escola inclusiva aconteça.  A primeira é a cultura inclusiva. É papel do gestor organizar o seu projeto pedagógico junto com seus professores, desenvolvendo ações voltadas para mudanças culturais, para a mudança de atitude, para a crença da inclusão. Em outras palavras, a escola deve ser inclusiva, não porque a lei manda, mas porque as pessoas passam a acreditar naquilo e, assim, fica bem mais fácil para desenvolver a segunda dimensão, que são as políticas de inclusão dentro da escola. O gestor também é o responsável por organizar essas políticas que vão desde a formação dos professores à acessibilidade física e pedagógica. A terceira dimensão é o desenvolvimento de práticas pedagógicas inclusivas. O aluno precisa de aparato, de uma estratégia pedagógica diferenciada.

O POVO – A senhora fala da importância do gestor. Ele deve focar em estudos na área de educação inclusiva?
Selene – A gente entende que, realmente, assim como existe a formação específica para professor, que deve se pautar no fortalecimento das práticas pedagógicas, para o gestor, existem também conhecimentos necessários. Ele deve conhecer bem a legislação, a forma de abordagem com a própria família, a busca de parceria com a comunidade para atendimentos complementares. A criação de um projeto de ação que contemple o fortalecimento da educação inclusiva. Saber o que o professor necessita diante das dificuldades. São várias ações que vão partir da iniciativa do gestor e, para isso, ele precisa ler, conhecer, para que a escola seja inclusiva como um todo.

O POVO – E qual o papel do professor regular? Como é feita a formação dele ou como deveria ser feita?
Selene – Primeiro de tudo, é dentro de uma cultura, de ele acreditar que, de fato, o lugar daquele aluno é na sala de aula dele; que pode desenvolver ações daquilo que é de sua competência, ações pedagógicas que possibilitem o aluno a aprender. O grande papel da escola é trabalhar o saber sistematizado, o conhecimento científico. O aluno com deficiência tem direito ao currículo, ao saber universal, porque a escola existe para cumprir essa função. Claro, além da formação humana, ela tem a função de socializar esse saber construído pela humanidade através da ciência. O professor tem que ter a crença de que é um bom professor para crianças sem deficiência e que também pode ser para crianças com deficiências. Se o professor é da rede pública, ele tem que ser favorecido pela Secretaria (da Educação), pelo sistema. Se é da escola particular, as gestões devem buscar essa formação para os professores. O próprio apoio entre colegas é importante, o compartilhamento de experiências exitosas. Os professores têm que ter envolvimento de busca, e com apoio da gestão, e também ter um movimento individual que faz parte da formação do professor.

O POVO – A formação desses professores passa por algo específico, algo que já venha das universidades?
Selene – Hoje, as universidades, as licenciaturas, os cursos de Pedagogia, a formação de professores de uma forma geral já têm no seu currículo a obrigatoriedade de oferta de disciplinas relativas a esses conhecimentos. Antes não existia. Quando me formei, não existia. Às vezes, tinha como optativa, e olhe lá quando era oferecida, mas numa abordagem muito clínica. Hoje, as disciplinas de educação especial avançaram, os alunos de formação para professores já saem com uma visão inicial. O MEC exige uma política institucionalizada nas universidades, não só na matrícula e no atendimento do aluno com deficiência, mas na formação de professores. Na UFC (Universidade Federal do Ceará) existe uma Secretaria de Acessibilidade que dá todo o aparato de que o aluno precisa.

O POVO – Como o gestor e o professor podem contribuir no âmbito familiar?
Selene – A questão da família é fundamental. A família deve ser parceira, é importantíssimo. Para que o professor educacional especializado faça seu trabalho, quando vai fazer avaliação diagnóstica e pedagógica desse aluno, não seria completo se não buscasse as informações com a família. Tenho que saber a história de vida dessa criança até chegar à escola, o que sabe fazer de melhor. A gente olhar para o princípio da educação inclusiva é deixar de lado o olhar da limitação e olhar para o potencial. Quem melhor vai falar desse potencial é a própria família. Preciso saber o que ele sabe fazer, o que ele gosta, é um recurso que vai ajudar a montar o meu plano a partir das competências desse aluno. É preciso o apoio da gestão, promovendo reuniões na escola, atendendo os pais individualmente e em grupo e apoiando-os. A escola tem que ser um espaço onde a família tenha confiança em deixar filho. Costumo dizer assim: quanto menos a escola tem deficiência, menos também o aluno vai ter deficiência. A escola tem o poder de determinar a condição de deficiência.

O POVO – A educação inclusiva está equilibrada nas escolas e universidades?
Selene – Estatisticamente houve avanço. O MEC mostra a evolução da oferta. Houve grande inversão do gráfico ascendente. Antes esse atendimento era 90% em escolas especiais. Agora é o contrário. Antes, as crianças nem estudavam, algumas poucas iam para a escola especial. Com a emenda constitucional de número 59, que amplia a obrigatoriedade da educação no Brasil, de quatro para 17 anos, hoje, qualquer criança ou jovem nessa faixa etária tem que estar na escola. Isso também ampliou a política de inclusão e a lei evoluiu no sentido de obrigatoriedade da educação básica. A educação básica no Brasil é obrigatória.

O POVO – O aluno com deficiência está conseguindo chegar à faculdade?
Selene – Você vê esse reflexo na universidade. Cresceu consideravelmente o número de aluno com deficiência nas universidades. Hoje, o MEC não aprova nenhuma universidade que não tenha estrutura acessível e todo aparato para receber esses alunos. E, consequentemente, os alunos que estão nas universidades estão chegando ao mercado de trabalho.

O POVO – Em seus estudos, a senhora fala sobre a cultura do individualismo do professor, que ele não compartilha do saber e de recurso com os outros. Qual é a importância de o professor interagir com os outros professores?
Selene – Isso é fundamental. Quando se fala da pedagogia de atenção às diferenças, tem por trás o princípio da educação compartilhada. A educação inclusiva só tem sentido dentro da proposta de educação cooperativa, não só dentro da sala de aula, mas na prática entre professores. A boa escola vai priorizar no seu planejamento que os professores troquem saberes, materiais, conversem entre si. Acabar com a cultura do individualismo. “Ah, o meu aluno.” Não, ele é aluno da escola. Tem que acabar com essa pedagogia que incentiva a competição dentro da sala de aula e partir para práticas que incentivem trocas entre alunos, assim como é saudável entre professores.

O POVO – Como as mudanças necessárias na escola inclusiva podem ser feitas da forma mais adequada?
Selene – A grande utopia seria a gente acabar com esse adjetivo inclusiva. É uma escola para todos. Se ainda preciso usar inclusão, escola inclusiva, é porque existe exclusão. Significa que muitos ainda estão fora. Não só crianças com deficiência. Quando se fala em educação inclusiva, não se refere só à educação das pessoas com deficiência. Refere-se ainda ao atendimento de vários segmentos que têm dificuldades de se beneficiar da escola. Ainda existem muitas crianças fora da escola por sua condição de pobreza, que sofrem abuso, violência. Para a escola ser inclusiva, ela precisa de um novo projeto. Se tiver como está nas práticas tradicionais, vai só receber o aluno, mas não vai incluir. Para incluir, ela tem que pensar coletivamente com seus colegiados e seus professores sobre o projeto de mudança. Para ser inclusiva, ela precisa melhorar e toda melhora exige mudança. Não melhora do nada. Preciso propor a formação, a porta para passar o aluno cadeirante, a relação com a família, o atendimento por especificidade do aluno. São várias situações que a escola vai ter que se transformar para propor melhorias que atendam satisfatoriamente o público-alvo da educação especial ou os segmentos excluídos.

O POVO – Que tipo de cuidado a escola deve tomar para que, em vez de inclusão, não gere mais preconceitos contra o aluno com deficiência?
Selene – Primeiro, a dimensão que falei: a cultura. Trazer isso como uma coisa natural. Receber uma mãe que chega com seu filho para matricular de uma forma natural. O desenvolvimento da cultura é fundamental para acabar com o preconceito. Quanto menor a criança chegar à escola, melhor. Ser recebida como aluno, e não como aluno deficiente. Os direitos são para todos. Não podemos dizer que vamos atender todo mundo igual. A gente é igual, o aluno é igual no direito, mas ele é diferente nas suas necessidades. Pelo contrário, a escola tem que ver todos os alunos como diferentes. Ninguém é igual, tanto aluno com e sem deficiência, eles são diferentes em algum momento. Temos que atendê-los nas suas necessidades.O preconceito está no adulto. As crianças, ao lidarem com seus coleguinhas com deficiência, são solidárias. A grande questão da escola é saber olhar para a diferença como valor, e não como problema.

O POVO – Quando se fala em educação inclusiva, qual seria o maior erro?
Selene – A dificuldade ou a necessidade para avançar. É tirar a cultura do olhar para a limitação. É a gente deixar de olhar para a limitação, a dificuldade, e mudar esse olhar para o potencial da criança, que aquele aluno pode se desenvolver e contribuir como cidadão socialmente.

O POVO – Qual a avaliação inclusiva do Ceará, sobretudo no ensino público?
Selene – Em Fortaleza, já temos um trabalho consolidado, uma equipe de referência na Secretaria da Educação, que existe desde 1994. Eu que inaugurei a primeira equipe. De lá pra cá, avançou muito. Claro que ainda tem muito o que vencer. Mas hoje já temos a figura do profissional de apoio, algo previsto pela legislação. Isso era muito difícil para o sistema. Os municípios de Maracanaú, Fortaleza, Quixadá e outros, que vou ser injusta de não citar os nomes, são premiados nacionalmente pelas suas experiências. São municípios que estão levando a sério. Percebe-se que os gestores estão incumbidos, não só de cumprir a legislação, mas de fazer um trabalho de atendimento mesmo.

O POVO – E quais são os principais desafios da escola?
Selene – No ano de 2016, a promulgação da Lei Brasileira de Inclusão ajudou bastante. Essa lei traz grandes avanços bem explícitos aos direitos. A lei impulsiona, e o desafio é manter essas políticas de mudanças de alguns paradigmas políticos no Brasil. A gente não tem como negar sobre as políticas do governo Lula, governo Dilma, da garantia desses direitos. Hoje, o Brasil é considerado um dos mais avançados na legislação de inclusão. O desafio é manter e olhar para frente sem nenhum retrocesso.

Creaece

Um lugar de múltiplos saberes

Atendimento, formação e produção são os três pilares que compõem o Centro de Referência em Educação e Atendimento Especializado do Estado do Ceará. Tudo baseado nos conceitos de inclusão e acessibilidade

Isabel Costa / isabelcosta@opovo.com.br

É no Centro de Referência em Educação e Atendimento Especializado do Estado do Ceará (Creaece) que existe um dos trabalhos mais relevantes para famílias de crianças com deficiência e profissionais da rede pública de ensino. Localizado no Bairro de Fátima, o local é amparado em três pilares: atendimento, formação e produção.

Conforme explica Caroline Lima Gomes, assistente social, os professores têm acesso a cursos de libras, braile e outras competências que facilitam a relação em sala de aula. Além disso, diversos materiais pedagógicos são produzidos baseados nos conceitos de inclusão e acessibilidade. Em outra ponta, as famílias têm acesso a atendimento especializado e apoio de profissionais.

“Nós temos uma demanda gigantesca por esse tipo de atendimento especializado. O número de crianças com deficiência aumentou consideravelmente, e o único centro que faz todos os atendimentos em um lugar é o nosso. Temos os Núcleos de Atendimento Pedagógico Especializado, os Napes, que têm um formato parecido, mas com equipe reduzida. Aqui temos um número muito maior de profissionais”, explica.

E para o Creaece vão pais e mães de diferentes origens. Alguns encaminhados por escolas e médicos, outros que descobrem o centro por meio da internet. O perfil também é diversificado. Há famílias de várias camadas sociais. Todas, explica Carolina, com urgências e questões sobre o cuidar de uma criança com deficiência. “Como lidar com essa a nova realidade? O que fazer? Muitas famílias já vêm com pesquisas da internet e têm facilidade de se informar. Outras, não. Então, a gente já faz esse serviço de orientação. Como lidar com uma criança com deficiência em relação alimentação, regras, superproteção”, explica a assistente social. 

Serviço

Centro de Referência em Educação e Atendimento Especializado do Estado do Ceará (Creaece)
Onde: rua Graciliano Ramos, 52 – Bairro de Fátima.
Outras informações pelos números: (85) 3101 2070 / 3101 7011/ 3101 7826 / 3101 2167

Núcleos de Atendimento Pedagógico Especializado (Napes) em Fortaleza

EEFM Johnson
Onde: Rua Dra. Socorro Azevedo, s/nº – Luciano Cavalcante.
Telefone: (85) 3101 6153

EEFM Arquiteto Rogério Fróes
Onde: Avenida das Graviolas, 1000 – Cidade 2000.
Telefone: (85) 3101 7916

EEFM Monsenhor Dourado
Onde: Avenida Sargento Hermínio, 4600 – Padre Anchieta.
Telefone: (85) 3101 2706

CAIC Raimundo Gomes de Carvalho
Onde: Rua Raimundo Ribeiro, 400 – Autran Nunes.
Telefone: (85) 3101 5688

CAIC Maria Alves Carioca
Onde: Rua Sargento Barbosa, s/nº – Granja Portugal.
Telefone: (85) 3101 6122

EEFM Polivalente Modelo de Fortaleza
Onde: Avenida A, s/nº – José Walter.
Telefone: (85) 3101 3096

EEFM Paulo Ayrton
Onde: Avenida Frei Cirilo, 800 – Cajazeiras.
Telefone: (85) 3101 2164

EEM Paulo Benevides
Onde: Rua Angélica Gurgel, 186 – Messejana.
Telefone: (85) 3101 2164

Um ofício que é paixão

Jackson descobriu na docência uma profissão e uma alegria. Viu o número de alunos com deficiência crescer nas salas de aula e, por meio de recursos tecnológicos, consegue ganhar atenção e entusiasmo de todos

Isabel Costa / isabelcosta@opovo.com.br

Há 12 anos, quando Jackson Mendonça Soares começou a carreira como professor de Geografia, não havia a demanda de inclusão presente hoje. Os tempos eram outros, e boa parte dos alunos com deficiência ainda ficava restrita a instituições de cuidado específico. Mas as matrículas deles em escolas regulares cresceram vertiginosamente após a sanção de novas legislações. E o docente precisou encontrar novos caminhos e metodologias para as aulas.

Jackson aposta em um modelo de ensino interativo. Leciona para as turmas de terceiro ano da Escola de Ensino Fundamental e Médio Polivalente Modelo de Fortaleza, no bairro José Walter. Em todas as salas há, pelo menos, um aluno ou uma aluna com deficiência. Para facilitar a aprendizagem, ele começou a utilizar equipamentos de áudio e vídeo. Em todas as lições são mostrados recursos audiovisuais. Imagens, tabelas, gráficos, documentários e outros vídeos entraram na rotina dos estudantes como mecanismos naturais.

“Há cerca de um ano não dou aula só com pincel e lousa”, explica o docente. Mas, para a nova realidade ser possível, foi necessário fazer alguns investimentos: notebook, projetor, adaptadores, cabos, caixa de som. A escola dispõe de apenas um equipamento e não seria possível ministrar todas as aulas com os recursos. “São muitos professores para usar. Teria que ser dividido”, aponta. A aquisição vale a pena quando Jackson presencia a aprendizagem.

Preparar as aulas também exige mais tempo e trabalho. Hoje, ele tem um banco de dados com imagens, vídeos e materiais. Mas, até conseguir montar o acervo, cada novo dia de trabalho exigia preparação redobrada: “Gosto também de usar muitos exemplos e fotos. E escolho uma por uma”.

“Nós vivemos na sociedade do espetáculo, do som, da imagem. Trabalhar com as mídias é indispensável para prender a atenção deles. Uma coisa é eu mostrar um vulcão com fotos e vídeos. Outra é eu apenas falar sobre”. Jackson, que tem 36 anos, sempre amou geografia e sempre foi bom aluno. A docência veio como missão natural, um processo irreparável, uma paixão.

E o uso da tecnologia, explica o professor, é benéfico para todo o corpo de alunos – com ou sem deficiências. Assim, a sala de aula torna-se uma porta para outros mundos – onde florestas, oceanos e desertos estão a um clique. “Não é mais possível ministrar aulas, em nenhuma turma, sem o apoio desses recursos. É necessário para prender a atenção de todos os estudantes”, conta.

Existe outro fator que torna as aulas de Jackson ainda mais proveitosas e enche o docente de orgulho: o companheirismo dos estudantes. “Nas dezenas de turmas que eu tive, nunca vi exclusão. Eu presencio, sim, um respeito extremo que todos têm pelos colegas com deficiência. Não tem deboche, não tem piadinha, não tem preconceito”, exalta ele.

A inclusão realizada nas turmas regulares proporciona que outros recursos metodológicos possam ser empregados. “Nas salas de aula, os alunos incluem. Nunca excluem. Chamam os colegas com deficiência para as equipes. Gosto muito de trabalhar com seminários, com trabalhos em grupo. E é bom saber que eles nunca são excluídos. Mas, sim, incluídos pela turma, que aceita que eles têm peculiaridades no aprendizado”, comemora Jackson, orgulhoso.

Os múltiplos afetos da sala de aula

Além do suporte dos professores, crianças com deficiência contam com os outros alunos como parceiros no aprendizado. Cuidado, companheirismo e afeto são uma realidade inegável nas escolas de ensino fundamental e médio

Isabel Costa / isabelcosta@opovo.com.br

Entre todos os pais, especialistas e profissionais da educação consultados pelo O POVO, houve um consenso: os alunos de escolas regulares acolhem e respeitam os alunos com deficiência. Sem preconceito e sem medo. Eles apenas convivem e fazem de tudo para que os colegas se sintam confortáveis.

Brenda Castro Alves, 35 anos, produtora de eventos, colocou a filha na escola aos dois anos. Introduzir a educação cedo foi um conselho da Rede-Sarah de hospitais. E deu certo. “A minha filha, Bruninha, foi muito bem recebida e teve afinidade com a escola desde pequena. Não chorou. Não reclamou”, diz, satisfeita.

Bruna apresenta um atraso no desenvolvimento motor e ainda não consegue andar. Na escola, conta a mãe, as outras crianças correm para apanhar a mochila e o andador da coleguinha, são cuidadosas e atenciosas, ajudam com a desenvoltura de quem não foi poluído por preconceitos e estereótipos. “As professoras foram fundamentais, pois sempre trataram a Bruna não como uma criança diferente. Uma criança igual, apenas tem a limitação dela”, conta.

Todos ganham quando uma criança ou um adolescente com deficiência é verdadeiramente incluído no ensino regular. Não é um benefício unilateral, mas uma troca de saberes e experiências. O indivíduo vai ter a oportunidade de se socializar e de aprender. Os outros estudantes vão entender, desde cedo, que o mundo é múltiplo e que as diferenças existem para serem respeitadas.

Assim aconteceu com Lara Pires, 17 anos, estudante da Escola de Ensino Fundamental e Médio Polivalente Modelo de Fortaleza, no bairro José Walter. Ela entrou no ensino público no primeiro ano e, até então, nunca havia visto ou ouvido falar de uma pessoa com deficiência em sala de aula. No novo colégio, passou a conviver com Carla Carolina Gomes e Jéssica Monteiro.

“As meninas têm dificuldades com alguns conteúdos e nós tentamos ajudar. Não por obrigação, mas por carinho com elas mesmo. As duas têm diferenças e acredito que se sentem bem aqui, na turma, pois fazem parte do grupo”, explica Lara. Em aula, Carol e Jéssica são as mais atentas. Prestam atenção a cada movimento dos professores e identificam quando a turma está bagunçando. Nessas horas pedem silêncio e colocam ordem.

A tia e cuidadora de Jéssica, Ana Monteiro, reconhece a escola como fundamental para o desenvolvimento. Foi no ambiente que a adolescente conseguiu se socializar, desenvolver competências e ser parte de um grupo. Com o fim do ensino médio se aproximando, ela já faz planos. Procurou a Rede Cuca para consultar as possibilidades. Ficar sem estudar não é possível, ela diz, pois os inúmeros progressos alcançados com o ambiente escolar poderiam ser perdidos. Após o terceiro ano, planeja, Jéssica deve começar um curso em sua maior paixão: o teatro. “Ela faz parte do grupo da escola e ama”.

Todos juntos por uma educação inclusiva!

Para que a escola se torne um ambiente realmente inclusivo, é necessário que os vários atores do processo estejam dispostos a colaborar

O papel dos pais

– Apoiar os filhos com deficiência em suas particularidades e circunstâncias.

– Dialogar com os professores sobre a evolução dos alunos e as tarefas desenvolvidas.

– Buscar atendimento especializado com fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, psicólogos e psicopedagogos quando necessário.

O papel dos professores

– Pensar atividades que contemplem todos os alunos em suas diferenças.

– Incentivar a participação dos alunos com deficiência nas aulas.

– Buscar formação e cursos que ajudem nas atividades docentes.

O papel dos profissionais da escola

– Criar um ambiente saudável para a aprendizagem.

– Conversar com pais e professores sobre a evolução dos alunos.

– Solicitar recursos físicos e formações para professores ao poder público quando necessário.

O papel dos outros alunos

– Respeitar os estudantes com deficiência em suas peculiaridades.

– Apoiar, quando possível, os alunos com deficiência na realização de tarefas cotidianas.

– Comunicar aos dirigentes escolares qualquer situação de desrespeito que aconteça em sala de aula.

O papel do poder público

– Fornecer treinamento para os professores e para os profissionais da escola.

– Preparar a estrutura física (com rampas e outros equipamentos) que facilitem o deslocamento dos alunos com deficiência na escola.

– Ter centros e núcleos que deem suporte para famílias e profissionais da educação.

Passo a passo para a família

– Ao identificar que o filho ou a filha é uma criança com deficiência, a família deve buscar apoio de profissionais especializados, como terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos.

– A criança deve ser incentivada e inserida no ensino regular. As instituições que realizam atendimento especializados podem ser acionadas no contraturno escolar.

– Os pais devem visitar a escola antes de realizar a matrícula e conversar com profissionais de educação sobre as peculiaridades da criança.

– Se a matrícula for recusada, a família pode acionar instituições como o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Conselho Estadual de Educação.

– Os pais não devem pagar taxas extras em instituições particulares. A Lei Brasileira de Inclusão (LBI) garante que nenhuma tarifa excedente deve ser cobrada das famílias.

– Também não há limite de crianças com deficiência por sala de aula. Portanto, as escolas não podem usar esse argumento como justificativa. Houve uma resolução, de 2012, que permitia a limitação de crianças com deficiência por sala de aula. Mas a indicação foi revista pelo Conselho Estadual de Educação, na Resolução 456/2016.

– Os pais devem acompanhar o desenvolvimento da escola, conversando com professores, diretores e outros funcionários.

– É necessário estar presente no cotidiano escolar. Solicitando sempre que a criança seja incluída em atividades como apresentações e aulas de campo.

– A família deve dialogar sobre as formas de avaliação da criança, pedindo que sejam utilizados testes adaptados para a realidade da criança.

Os desafios do sistema

Para além do âmbito educacional, é necessário ter um sistema que apoie as pessoas com deficiência e suas famílias. Difusão da informação, aumento no número de profissionais e garantia de direitos a partir de legislação específica são mecanismos para construir uma escola inclusiva

Isabel Costa / isabelcosta@opovo.com.br

Boa parte dos alunos que chegam ao Centro de Referência em Educação e Atendimento Especializado do Estado do Ceará (Creaece) é encaminhada por professores que acreditam no potencial de melhoria e na necessidade de acompanhamentos especializados. Somado a isso, as famílias têm, cada vez mais, acesso a informação por meio da imprensa, da internet e dos profissionais de saúde – que realizam indicações. E a Lei Brasileira da Inclusão (LBI) garantiu, em um único instrumento, direitos que já estavam postos em outras ferramentas legais. A avaliação é feita pela assistente social Raquel Souza Caldas, que desenvolve trabalho no Creaece.

A educação tem se tornado mais inclusiva por conta de uma “rede” formada por profissionais e famílias. “Muito envolvida em fazer o aluno com deficiência ter os atendimentos necessários”, explica a assistente social. São os professores que elaboram as melhores aulas, mesmo quando não há todos os recursos físicos disponíveis, e os pais e mães que travam diariamente uma luta contra o sistema. Mas fazer a criança ter os atendimentos necessários ultrapassa as barreiras da escola.

“Observamos que a escola ainda não está preparada para receber determinadas demandas. O professor, às vezes, não tem a formação necessária para lidar. Às vezes, não sabe como conduzir a aula. O Creaece contribui nessa parte, pois oferece formações de vários âmbitos para os profissionais. A educação é indispensável na vida de qualquer pessoa, não seria diferente na vida das pessoas com deficiência”, elabora Raquel.

Ana Paula Fernandes, pedagoga da sala de Atendimento Educacional Especializado (AEE) da Escola de Ensino Fundamental e Médio Polivalente Modelo de Fortaleza, conta da dificuldade de algumas mães para conseguir fazer o filho entrar em sala de aula. “Elas acordam cedo. Muitas crianças precisam de ajuda para a higiene, para alimentação. Depois, vão pegar ônibus e não é adequado. O motorista não para, pois vai ter trabalho na locomoção. É uma batalha diária”, comenta.

Os desafios, afirma Ana, são convertidos em resultados. “Na última edição do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, a escola ficou toda mobilizada. A Seduc (Secretaria da Educação do Estado) tem uma indicação forte de incentivar os alunos a comparecer. E uma aluna com deficiência se interessou. Ela perguntou se poderia, nós fizemos a inscrição e ela foi fazer a prova. É gratificante”, aponta Ana Paula.

“Houve um grande upgrade da legislação. Hoje, temos a Lei Brasileira de Inclusão, e as discussões acontecem na Assembleia Legislativa. A inclusão começou a receber luz, receber atenção, ter visibilidade… E o passe livre para circulação nos ônibus também foi um avanço. As mães vão tomando conhecimento e têm a internet como uma ferramenta preciosa. A difusão de informações fez um efeito grandioso para a questão da pessoa com deficiência, pois elas se apropriam dos direitos e vão em busca”, aponta Raquel Souza Caldas, do Creaece.

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